domingo, 8 de novembro de 2009

A Oferenda

...até então, nunca eu tinha falado com ninguém. O que havia feito era comerciar palavra, em negoceio de sentimento. Falar é outra coisa, é essa ponte sagrada em que ficamos pendentes, suspensos sobre o abismo. Falar é outra coisa, vos digo. (...) Na palavra me divinizei. Como perfume em que perdesse minha própria aparência. Me solvia na fala, insubstanciada.

Todos usamos máscaras, senhor. Sempre nos soa cinza-frio considerar essa que, para uns tantos, é a imagem-mor de quem simula emoções... Mas o quinhão de mistério desse fato é aclimatar-se das nuances multicores que por trás delas se penumbram. É assim que via Esmeralda, que sempre fora dedicada aos afazeres que exigiam minúcia, aqueles ofícios que ressaltavam nela o que de melhor sabia ela cultivar: a paciência, virtude dos que sabotam o tempo que nos encurrala frente aos seus caprichos. Levemente apoiada na maciez-verde daquele que era seu lugar cativo, ela unia, uma a uma, todas as miudezas, com ares e pompa de miçangas, entrelaçadas em fios ansiosos em se tornarem ornamento garrido, como havia de ser. Esse era o ato que encenara dias a fio...

Aos olhos alheios, por mais familiares que se supunham ser, a filha de Seu Nonado, por muitos anos, sempre fora silêncios. Em sua timidazinha cidade, de prosa, faziam-se todos e, nela, era a palavra que reluzia a ouro. De cada papeado-flor da vizinhança, Esmeralda sempre guardou consigo a pétala que acreditava ser a mais valiosa: “Ah! Pois Cego Aderaldo vê muito mais que nós tudinho! Quando se perde um sentido, nasce outro no lugar...”. Assim, seguia ela abdicando da palavra. Até aquele dia.

Diferentemente dos dias acostumados a passar, aquele nascia com as primeiras badaladas metálicas, vindas do seio da cidade: janeiro começava. Não era oficial, mas celebrar a santa padroeira e o início das novenas, mesmo em meados do mês, sempre significara dar as boas-vindas ao ano. A partir desse anúncio até a noite, o centro da cidadezinha passava, então, a ser outro. Esmeralda, da varanda de sua casa, onde terminava a sua oferenda, avistava as mulheres reunirem-se em frente à casa lilás, a terceira depois da sua. Lá, no melhor exemplo de que os tempos modernos também piscadelavam suas marcas, cada uma delas, reunidas em grupos, recebia um tarefa: o primeiro grupo separava as garrafas plásticas, angariadas durante meses, e as cortava ao meio, quando fossem transparentes e mais largas, para as devotas mais diretamente ligadas à organização da procissão, e um pouco menor para as demais pessoas; o segundo grupo colocava uma vela, que seria acesa à noite, em cada um dos gargalos das metades úteis das garrafas; e, por fim, o terceiro grupo, normalmente o maior, as adornavam. Não era essa atividade, no entanto, que usurparia o lugar daquela que elas mais sabiam fazer. Ali, colocavam em dia suas vidas, falando das demais.

A tarde ia passando e, do seu lado azulejado da calçada, eram as miçangas que zigzagueavam o silêncio. As pedrinhas mais antigas, as primeiras a serem entrelaçadas no fio, ainda faziam brilhar a furta-cor dos sonhos de valsar a noite inteira, em pescoço cobiçado pelos olhares alheios. No segundo trançado do colar, aos pouquinhos, ganhavam lugar outras menos ofuscáveis, mas de cor mais concentrada, mais densa, oscilando entre variações de vermelho. Em fósforo, esse tipo logo acabara e, estando em falta, Esmeralda resolvera utilizar as únicas que ainda restavam. Tinham um tom cinza-profundo, um pouco gastas pelo tempo em que estiveram na caixinha de bordado. Também eram mais largas que as demais, o que fez com que ocupassem mais espaço do colar. Com essas, Esmeralda o tinha finalizado.

Era chegada a hora. Todos os moradores que ali residiam amontoavam-se em frente ao lilás da casa e, um a um, recebiam a senha para costurar a noite com chamas. Rompendo a ansiedade que permeava o ambiente, a imagem da padroeira surge de dentro da casa, sustentada por quatro homens, que passam a encabeçar a procissão, pelo perímetro da cidade. Esmeralda foi a última a chegar, mas acompanhava os demais que seguiam em caminhada. Em suas mãos, com o zelo de quem carrega a vida, ela levava seu colar, ansiando pelo momento de oferenda, de costas para igreja, defronte ao mar. Ela sempre gostou do mar. Era sagrado para ela. Quando era mais nova, Esmerada gostava de imaginar que ali confraternizavam todas as lágrimas daquele povoado e catalogava, horas a fio, os possíveis motivos de cada uma delas. Morte da mãe, briga com namorado, desilusão amorosa. Cada motivo, uma lágrima caída. Menos as dela. Esmeralda era daquelas pessoas que choram para dentro, em que cada lágrima escorre navalhando um tiquinho de si. As de mar só são mais ligeiras que, em zíper, separam-se das demais.

Findadas as canções à santa que embalavam a caminhada, os quatro homens repousavam a imagem da padroeira em um pequeno altar, no coreto, ao lado da igreja. Nele, uma pequena balsa ansiava os pequenos agrados que deveria entregar ao mar. A filha de Seu Nonado, a única dos seis irmãos que ainda ficara na cidade, vestia o luto das vidas que saudadeava não ter vivido e, com ele, entregava a sua prenda, confeccionada por tanto tempo. Repletas do colorido da cidade, a balsa foi, então, levada ao mar.

- Soltem a corda. Ele já pode seguir!

Seguindo a ordem, os homens deixaram o barco seguir seu rumo, rasgando a imensidão. Por causa do peso das quinquilharias, a balsa, pouco a pouco, foi afundando, fazendo com que víssemos apenas alguns poucos coloridos espalhados pelo mar. Mas, sem que haja entendimento, em toque na água, as pedrinhas do colar multicor iam solvendo-se e, como fábula, desafiando as leis do tempo, Esmeralda, oca, tombava lentamente no chão.

- Naquele dia, senhor, todos a vimos chorar.