domingo, 2 de março de 2014

Das sete faces

Tinha um gato no meio do motor. Acorda, acorda. Ainda meio sonolenta, tateio por meus óculos, abandono a camisola e me visto de dia útil. Desço as escadas apressada e a claridão me ofusca as vistas ainda desacostumadas do dia. É então pelo miado rasgado e estridente e cortante que me guio até o carro. Não morreu, antes gritava pela vida, mas já atrapalhava o tráfego, estava na contramão do fluxo dos dias. Levanto o capô e encontro os verdes esbugalhados reluzindo um pedido de atenção. Não piscou, antes usava o farol alto, num anseio de dissipar a neblina que me envolvia. Por alguns segundos, silencia aquele canto de sereia desafinado e dá início a outra hipnose, fitando-me profundamente como se me enlaçasse para outro mundo, como se me oferecesse um espelho, como se, afinal, me indagasse: quem está no meio das ferragens? Quem se refugia por entre engenhocas e grita de pavor no contato com o calor? Quem é mesmo que precisa ser resgatado? No final daqueles segundos seculares, desvio o olhar, desço pelo protetor de cárter por onde entrei e vou viver minha segunda vida.