segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Sobre os abismos



Cena do filme Her
Há alguns anos, retomei o hábito de escrever cartas. Muitas delas são para mim mesma, outras alcançam outros destinatários. Escrever, não digitar. Mas se digitadas, perderiam a importância do dizer? Se manuscritas digitalmente, a partir de um sistema que capta a voz, teriam menos valor? Logo na primeira cena do filme Ela, ambientada num futuro que, por não ser datado, pode ser sempre, descobrimos que o trabalho do protagonista é este: criar cartas para e por pessoas desconhecidas. E essa é a grande ironia que perpassa todo o filme e que o torna complexo como nossas relações. A mesma pessoa que se mostrava incapaz de escrever a sua própria carta dirigida a quem a merecia, que se mostrava impotente diante da incompreensão do que se passava consigo mesma, que se mostrava estagnada diante de um recente vazio, era habilidosa suficiente para criar cartas belas, porque sensíveis, para outras pessoas que contratassem seus serviços - e que, por sua vez, também não as escreviam. No filme, Theodore recorre a um moderno sistema operacional para distrair-se de seu vazio, mas é se distraindo que ele percebe que um vazio só se preenche quando é encarado, quando é abismado, quando é possível sentir vertigem. A do protagonista vem em decorrência do confronto com os números. Muitos, impossíveis aos humanos. Humanos que são feitos de um corpo e de um, dois, poucos. "Ela" não trata apenas da relação homem/tecnologia, mas a partir dela nos grita sobre o movimento necessário de se perder para se achar, de se afastar de si para se ver, o que só acontece com quem está atento aos esclaros - brigada, Rosa - do percurso. Não importa tanto se frutos do reluzir da tela do computador ou da poça d'água que "transporta o céu para o chão".

(Comentário de 19.02.14)

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O prazer é meu

"Meu nome é Nadiana". Repeti essa constatação por toda minha vida, um dos poucos enunciados bem audíveis em meio aos meus silêncios. Mas a certeza com que eu o dizia se comungava com outra certeza: a de que teria que repeti-lo mais uma vez, macaqueando a pronúncia com algum artifício para que fosse melhor entendido: NA-DI-A-NA, com A. Ou mesmo repetindo as respostas-padrão: Sim, tem I. Não, com um N só. É Diana com NA na frente. A primeira incompreensão de mim começava pelo nome. E essa condição me assolava: meu primeiro encontro era pautado pelo não entendimento. Depois de me apresentar formalmente, minhas primeiras palavras ao outro reivindicavam atenção. E a surpresa vinha quando eu não precisava fazer isso... Como remédio, havia decidido abreviar a história: pode me chamar de Nadi. Mas sem perceber, o carinho vinha e eu virava nadinha - de nada. E de nadas eu fui me compondo. E construindo meus nadifúndios, a parte que me cabe, como me ensinou Manoel de Barros. Do nada, meu nome virou elemento de composição: Nadigélsia, Nadijane, Nadivalesca. É que houve, por um tempo, uma disputa informal de alguns ex-alunos queridos pelas melhores ou mais hilárias construções, com as quais me divertia sempre nos inícios de aulas. Até que, depois de uma aula de Botânica, um deles venceu: Nadicotiledônia. O que seria um pulo para Nadicoti, Coti, Cotinha. Ganhei, por fim, um epíteto: Cotinha - a avó. :) Mas isso já é "culpa" de uma amiga, a Feia, uma das poucas que pode ter esse apelido. Havia descoberto que, afinal, é do nada que tudo se constrói. Meu nome era vários, e várias me torno a cada novo nome. A história do de batismo também não é única: meu pai tinha sugerido Nádia, negado com veemência por minha mãe, pelo que ele revivia nela. Minha tia-avó materna era Madiana. Nadiana resultou de uma negação e de uma homenagem. O curioso é que assim esteja sendo em vida, negando alguns nomes e aceitando outros em homenagem, que vão surgindo em forma de apelido. A última delas vem de uma amiga-flor, Liz, que me batizou de azul em chinês: me enchi de imensidão e também me tornei Lan. Meu pai, o Dadzinho, era mi padre nessa arte de batismo: macaquinha, formiguinha, ratinha, fulustreca, cu riscado, bicho carpinteiro, arrupiada etc. Como se vê, todos muito amorosos. A verdade é bem essa, amor têm vários nomes e o de registro só é um. Pensando nesse percurso que começa no nome, lembrei que recebi uma vez esta mensagem, que é um daqueles afagos em palavras:

"Procurei introduzir em seu nome uma letra, N, e que letra! Designa o conjunto dos números inteiros naturais; é símbolo de unidade de força, aponta para o norte, a esperança, o radioso". (Drummond - História de amor em cartas). Lembrei de tu, que tem o N em dobro no nome, antes e depois do 'dia'.

E é com o dia no umbigo do nome que vou me enchendo desses nadas pela vida.

domingo, 27 de julho de 2014

Atrás da névoa, era vovô*

Foto: Igo Bione/JC Imagem
Não conheci meus avós paternos e a única imagem que tenho de minha avó materna tem moldura de flores fúnebres. Foi vovô - amor quase sempre dispensa nome de batismo - quem ocupou esses quatro lugares em minha vida. Passei todas as férias escolares, durante minhas infância e adolescência, em Tacaratu, onde ele morava. Toda criança urbana deveria ter a oportunidade de viver, um tiquinho que fosse, os ares de uma cidade pequena, de uma cidade de interior. O afastamento do que conhecemos é a melhor maneira de conhecermos. Mas esta história de mim tem o sentido inverso, de Tacaratu a Olinda, quando meu avô precisou fazer uma cirurgia para evitar que ficasse cego completamente. Eu tinha uns nove ou dez anos. Do cantinho da mesa da cozinha, depois de um tempo em silêncio, enquanto eu ajudava minha mãe com as coisas para o jantar, ele diz quase como um soluço que escapa: "vem cá!". O tom meio impositivo me assustou; temi que ele estivesse se sentindo mal ou algo parecido. "Vem cá, menina", já repetia com um quê de impaciência, tateando pelo meu braço e alcançando meu rosto, que só ficou visível pelas brechas entre os dedos: "vem cá, deixa eu te ver". E o que eu vi foram as lágrimas dele, enquanto as minhas molhavam suas mãos. Poucas vezes me senti tão amada como neste momento. É a lembrança mais terna que tenho dele e me pergunto, volta e meia, o que ele pensava enquanto estava em silêncio... Qual teria sido a força que o fez quebrá-lo? Nunca saberei, mas meu avô foi um dos primeiros a me ensinar que a força que nos move é nutrida por esses intervalos na falação diária e que, muitas vezes, a melhor visão vem mesmo de olhos fechados... Bem, ele nos deixou alguns anos depois, em um Natal, o primeiro em que meu pai, minha irmã e eu ficamos separados de minha mãe: ela tinha retornado a sua cidade apenas a tempo de dizer "vá em paz, papai". Era a última, entre os filhos espalhados por outros estados, a se despedir. Nasciam em vovô, enfim, os derradeiros olhos cerrados. 


* Resgato o título que este relato ganhou em "A história de mim", caderno especial do Jornal do Commercio, idealizado e escrito por Fabiana Moraes, jornalista cujo nome já tem valor de adjetivo. Para acessar a versão recontada/reconstruída, acessar: A história de mim - Nadiana


domingo, 2 de março de 2014

Das sete faces

Tinha um gato no meio do motor. Acorda, acorda. Ainda meio sonolenta, tateio por meus óculos, abandono a camisola e me visto de dia útil. Desço as escadas apressada e a claridão me ofusca as vistas ainda desacostumadas do dia. É então pelo miado rasgado e estridente e cortante que me guio até o carro. Não morreu, antes gritava pela vida, mas já atrapalhava o tráfego, estava na contramão do fluxo dos dias. Levanto o capô e encontro os verdes esbugalhados reluzindo um pedido de atenção. Não piscou, antes usava o farol alto, num anseio de dissipar a neblina que me envolvia. Por alguns segundos, silencia aquele canto de sereia desafinado e dá início a outra hipnose, fitando-me profundamente como se me enlaçasse para outro mundo, como se me oferecesse um espelho, como se, afinal, me indagasse: quem está no meio das ferragens? Quem se refugia por entre engenhocas e grita de pavor no contato com o calor? Quem é mesmo que precisa ser resgatado? No final daqueles segundos seculares, desvio o olhar, desço pelo protetor de cárter por onde entrei e vou viver minha segunda vida.