Foto: Igo Bione/JC Imagem |
Não conheci meus avós paternos e a única imagem que tenho de
minha avó materna tem moldura de flores fúnebres. Foi vovô - amor quase sempre
dispensa nome de batismo - quem ocupou esses quatro lugares em minha vida.
Passei todas as férias escolares, durante minhas infância e adolescência, em
Tacaratu, onde ele morava. Toda criança urbana deveria ter a oportunidade de
viver, um tiquinho que fosse, os ares de uma cidade pequena, de uma cidade de
interior. O afastamento do que conhecemos é a melhor maneira de conhecermos.
Mas esta história de mim tem o sentido inverso, de Tacaratu a Olinda, quando
meu avô precisou fazer uma cirurgia para evitar que ficasse cego completamente.
Eu tinha uns nove ou dez anos. Do cantinho da mesa da cozinha, depois de um
tempo em silêncio, enquanto eu ajudava minha mãe com as coisas para o jantar,
ele diz quase como um soluço que escapa: "vem cá!". O tom meio
impositivo me assustou; temi que ele estivesse se sentindo mal ou algo
parecido. "Vem cá, menina", já repetia com um quê de impaciência,
tateando pelo meu braço e alcançando meu rosto, que só ficou visível pelas
brechas entre os dedos: "vem cá, deixa eu te ver". E o que eu vi
foram as lágrimas dele, enquanto as minhas molhavam suas mãos. Poucas vezes me
senti tão amada como neste momento. É a lembrança mais terna que tenho dele e
me pergunto, volta e meia, o que ele pensava enquanto estava em silêncio...
Qual teria sido a força que o fez quebrá-lo? Nunca saberei, mas meu avô foi um
dos primeiros a me ensinar que a força que nos move é nutrida por esses
intervalos na falação diária e que, muitas vezes, a melhor visão vem mesmo de
olhos fechados... Bem, ele nos deixou alguns anos depois, em um Natal, o
primeiro em que meu pai, minha irmã e eu ficamos separados de minha mãe: ela
tinha retornado a sua cidade apenas a tempo de dizer "vá em paz,
papai". Era a última, entre os filhos espalhados por outros estados, a se
despedir. Nasciam em vovô, enfim, os derradeiros olhos cerrados.
* Resgato o título que este relato ganhou em "A história de mim", caderno especial do Jornal do Commercio, idealizado e escrito por Fabiana Moraes, jornalista cujo nome já tem valor de adjetivo. Para acessar a versão recontada/reconstruída, acessar: A história de mim - Nadiana