domingo, 23 de setembro de 2012

Pêndulo*

Num riscar de fósforo, Seu Oraci puxa a cadeira e distribui o insustentável no pequeno círculo acolchoado junto ao balcão. Deslizando em síncrona coreografia, a xícara chega a suas mãos e estas aparam seu reflexo em ondulações negras. Não se demora nesse ângulo e logo fixa o olhar no nada azulejado a sua frente. Vai se distraindo com os desenhos desfigurados nos quadrados ao passo que a vista vai neblinando... – e o que ganha sol é o caminho que aqueles goles passam a cumprir em si. Concilia seus pensamentos a esse percurso líquido, tentando afugentar aquelas lembranças.
Seu Oraci concentra-se para ignorar.
Seu pensamento dá as mãos àqueles goles. Boca. Língua. Garganta. Estômago. Boca, língua, garganta, estômago. Boca, língua. Garganta. Era como quem principiava a nadar. Quando o ar falta e é preciso emergir, repara-se que os membros bateram em vão: ainda se está no mesmo lugar.
Foi quando a viu chegar novamente. E, como da primeira vez, ela rompia a reunião de silêncios que ali confabulavam. Ao “posso sentar aqui?” ainda não conseguia encontrar resposta em um repertório de palavras burocráticas. Não julgava dignas para aquela situação que, se desconhecida, deveria ser boa. Espantava-se duplamente: será que ela entendia? Não teve muito tempo para especular o porquê de ela ter se acomodado ao seu lado. Precisava aprender a se comunicar naquela nova língua em que os sentidos se atrapalham quando passam a sentir. A voz dela abraçava seus pavores e os ninava, acordando o conforto de novos dias que tinha reconhecido de seus sonhos. O barulho de uma garrafa de vinho que caíra do lado de fora (um grupo de adolescentes fazia um pequeno alarido do lado de fora) fez com que os dois percebessem que já era bem tarde. Não haviam notado que o único portão aberto ainda os esperava. Ensaiaram uma despedida desajeitada e firmaram um bom-dia na manhã seguinte. Mas o amanhã não veio. O senhor do balcão encontrou no bolso ainda uma última carta para especular e jogou-a na mesa, mas aquela mulher não estava mais disposta a esperar pela próxima rodada. “Até logo! Pode ficar com o troco, tá?”. Vencida, saía placidamente enquanto o senhor, mais uma vez, contava as moedas que restam de um desencontro. Em assovio, rememorava uma canção e se dava conta que ele também vivia em uma plataforma de trens. Eles vêm e vão, vão e vem, como o relógio do poeta, mas sempre havia os que vinham em vão, os que abriam vãos com a partida. Mas, em ciclos, para poder chegar.
Então, dá só mais um gole, às pressas. Ainda precisa comprar o presente de um ano de seu filho. Dia cheio, trânsito infernal. Seu Oraci ignora para se concentrar: “desta vez, chego em tempo”.

* incidental: