Num riscar de fósforo, Seu Oraci puxa a cadeira e distribui o
insustentável no pequeno círculo acolchoado junto ao balcão. Deslizando em
síncrona coreografia, a xícara chega a suas mãos e estas aparam seu reflexo em
ondulações negras. Não se demora nesse ângulo e logo fixa o olhar no nada
azulejado a sua frente. Vai se distraindo com os desenhos desfigurados nos
quadrados ao passo que a vista vai neblinando... – e o que ganha sol é o
caminho que aqueles goles passam a cumprir em si. Concilia seus pensamentos a
esse percurso líquido, tentando afugentar aquelas lembranças.
Seu Oraci concentra-se para ignorar.
Seu pensamento dá as mãos àqueles goles. Boca. Língua.
Garganta. Estômago. Boca, língua, garganta, estômago. Boca, língua. Garganta. Era
como quem principiava a nadar. Quando o ar falta e é preciso emergir, repara-se
que os membros bateram em vão: ainda se está no mesmo lugar.
Foi quando a viu chegar novamente. E, como da primeira vez,
ela rompia a reunião de silêncios que ali confabulavam. Ao “posso sentar aqui?”
ainda não conseguia encontrar resposta em um repertório de palavras
burocráticas. Não julgava dignas para aquela situação que, se desconhecida,
deveria ser boa. Espantava-se duplamente: será que ela entendia? Não teve muito
tempo para especular o porquê de ela ter se acomodado ao seu lado. Precisava
aprender a se comunicar naquela nova língua em que os sentidos se atrapalham
quando passam a sentir. A voz dela abraçava seus pavores e os ninava, acordando
o conforto de novos dias que tinha reconhecido de seus sonhos. O barulho de uma
garrafa de vinho que caíra do lado de fora (um grupo de adolescentes fazia um
pequeno alarido do lado de fora) fez com que os dois percebessem que já era bem
tarde. Não haviam notado que o único portão aberto ainda os esperava. Ensaiaram
uma despedida desajeitada e firmaram um bom-dia na manhã seguinte. Mas o amanhã
não veio. O senhor do balcão encontrou no bolso ainda uma última carta para
especular e jogou-a na mesa, mas aquela mulher não estava mais disposta a
esperar pela próxima rodada. “Até logo! Pode ficar com o troco, tá?”. Vencida,
saía placidamente enquanto o senhor, mais uma vez, contava as moedas que restam
de um desencontro. Em assovio, rememorava uma canção e se dava conta que ele também
vivia em uma plataforma de trens. Eles vêm e vão, vão e vem, como o relógio do
poeta, mas sempre havia os que vinham em vão, os que abriam vãos com a partida.
Mas, em ciclos, para poder chegar.
Então, dá só mais um gole, às pressas. Ainda precisa comprar
o presente de um ano de seu filho. Dia cheio, trânsito infernal. Seu Oraci
ignora para se concentrar: “desta vez, chego em tempo”.
* incidental:
* incidental: