“Depois do fogo, restam só fumaça em brasa/ Eu tiro as cinzas do meu corpo nu/ daqui a pouco os meus braços serão asas/ e eu me levanto, renascido e cru.”
Quanto pesa uma coincidência?
Abdico das aspas para marcá-la, mas não nego sua oquidão: é a mais dissimulada
de nossas palavras. Talvez, a mais fraca, a mais covarde. Projeta no acaso, em
uma forma de redenção, seu sentimento de culpa. Quanta culpa carregam as
coincidências? Assim como elas, as festas carnavalescas suspendem, pelas horas
e horas que as costuram, nossos pesos. Inebriam nossos anseios, subestimando-os
frente ao mais fácil.
E como não ser em uma quarta de
cinzas? Em automático, tinha chegado ao último dia de carnaval. Muito vi, muito
senti, muito cansei, em muito me animei. Chegava ali com ânimo e disposição
para mais. O mais que transborda e nos permite ver o que há dentro. Foi em uma festa,
em despedida daquela que se acostumou a ser chamada de terça ingrata, afinal,
nos desfazemos de tudo por aqueles dias que, de garantias, só têm a brevidade.
Entre coloridos de fantasias,
sons e danças, mais pessoas se reuniam ali, num refúgio que prolonga a sensação
de ingratidão. À procura da gota salvadora, afastei-me. A opção era subir as
escadas, elevando-me. O silêncio é sempre maior em meio ao barulho e, de quando
em quando, precede as melhores (re)descobertas de si. Mas me refiro ao
silenciar que, em gesto de humildade, celebra suas muitas outras vozes, dá
vazão a seus embates interiores; não calar apenas, como protesto ao que se
fala, ao se grita. São os gritos sem som que mais fazem alarde.
No alto, meu sentimento era,
então, de gratidão. A visão panorâmica do Recife acordando, em meio às cinzas,
trazia sorrisos-menino às vozes que em mim ecoavam. Trazia brisa soprando ao
longe as minhas cinzas. Naquela altura, pelas sutilezas da vida, estive minutos
sonâmbula, perambulando pelos meus objetivos de vida, pelos meus medos, pelas
minhas dúvidas, pela minha insegurança. Enfim, pelos meus sonos acordada. Eis
que alguém me desperta desse entre-lugar. Mais abaixo, no melhor que se pode
chamar de extrovertido, um moço acenava para mim veementemente e, como traquinagem,
aludia com as mãos a um quadro. Disse apenas: “um quadro, uma pintura: olhar distante, sol
e cabelos ao vento”. Não tinha como segurar o riso e, muito menos, não me afeiçoar
daquele que, também no burburinho, viu naquela cena aparentemente simples
e corriqueira, algo a se destacar.
Revisitando essa memória, percebo
o quanto visionário tinha sido aquele comentário. Era mesmo a pintura do que se
inaugurava em minha vida, era daquele alto que eu me preparava para um novo
salto. Assim como os nomes, cada fotografia tem sua história. Cada uma diz
muito de quem a recorta (subjetivamente) da realidade (reconfigurando-a) e
desvenda tantos muitos de quem é revelado. O que dizer quando se descobre que
aquela cena, de tanto significado para mim, foi capturada em seu exato momento?
Eu poderia calar – ou mesmo silenciar outra vez –, mas aquela foto revelada me
fazia reviver o instante em que mais uma parte de mim saiu da penumbra do véu.