Desamparinho
era uma palavra que a fascinava. Havia aprendido que era assim que os
cabo-verdianos chamavam o período em que a tarde vira noite. Achou de uma
profunda delicadeza unir a sensação de desamparo à de espera de um carinho
vindouro, bem própria desse período do dia. Essa descoberta, na verdade, dava um
novo contorno a seu habitual olhar barroco acerca das coisas que lhe sucedem.
Para Valentina, é a escuridão que permite o brilho da luz. Pensava nisso pouco
antes da sessão começar.
Todas
as atenções voltavam-se àquela novidade que, como operam outras de mesma
natureza, transforma qualquer cidade grande em um pacato vilarejo.
Especialmente no caso de Valentina que sempre encontrava morada na vila de
si... Ao cabo de alguns dias, foi construído um ambiente um tanto destoante dos
vizinhos de concreto e com um certo ar pretensamente bucólico, cujo centro era
um imenso telão que, dada sua grandeza, tornava todos meninos. Alguns, decerto,
voltavam aos comportamentos infantis; outros comportavam da infância o
deslumbre que traz uma certa placidez à vida adulta. A estes se unia Valentina
que, em sua meninice, encontrava no coreto da cidadezinha os ombros que lhe
alçavam a uma melhor visão dos filmes exibidos na praça, das tantas cenas
projetadas lá na frente.
No
entanto, o que se sucedia de inusitado, nessa particular exibição noturna em um
oásis urbano, era o emergir do plano de fundo do telão, como se tivesse sido
filmado por um cinemascope natural: o mar estava especialmente tingido por
nuances de cor âmbar e reivindicava seu papel principal. Não se acostumava a
ser mero coadjuvante. E em alguns instantes, sem que se apercebesse de que
maneira, Valentina começou a ouvir as engrenagens de um projetor distante, cujo
volume aumentava a medida que os embalos do ritmo ligeiramente mais frenético
passavam a enevoar sua visão. Neste estado de nuvem, a partir de uma luz vinda
de trás, viu um pequeno barco branco cortando em duas latitudes gêmeas o mar
negro-perolado - agora em primeiro plano.
Da
extremidade esquerda, de onde surgiu, o barquinho seguia ao encontro do lado
oposto, descortinando aos poucos um azul de frescor matinal que ganhava os
losangos coloridos livres do pano das velas, em razão do piscar dos ventos.
Entre uma e outra piscadela, Valentina passou a sentir novamente a brisa que
embaraçava seus cachos ainda mais dourados à luz do sol, voltou a habitar sua
pele rejuvenecida e ansiosa por novos ares. Era de novo apenas Tina. Tudo
parecia intacto naquela cena: ainda estava rodeada pelas conchas colhidas com
esmero para virarem pulseiras e colares para turistas. A pedra também ainda
estava lá. Enquanto a esfregava no côncavo das conchas até que furassem,
acontecia de prolongar a violência às suas pequenas mãos, que por vezes também
ficavam erodidas. Já não as distinguia da pedra, mas valia a pena juntar
qualquer dinheiro para sair dali. Com esse intuito, perdia a noção do tempo e
só com o cair da tarde notava as horas avançadas e a praia inóspita. Foi quando
percebeu que nada estava mesmo intacto. Voltou a sentir a angústia diante da
sombra que se aproximava. Reviveu a pele envelhecendo quando a sombra se
revelara mais sombria de perto. Aquelas mãos ainda estavam lá. Ele ainda estava
lá. A noite ainda estava lá. Mas ainda tinha uma pedra.
Então,
Valentina ouviu as palmas. Os créditos do filme subiam na tela. Era hora de
voltar para casa. No dia seguinte, precisaria retomar sua vida de cidade grande. E suas tentativas de lavar as mãos.
3 comentários:
De missão impossivel pra melhor impossível. :) mt bom.
eita, adorei, Liz! Brigada! "Tudo pode dar certo". :D
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