quinta-feira, 5 de abril de 2012

Entrecortados

Ser regulada resumia Lena. Hora para comer, hora para estudar, hora para acordar, hora para falar e calar. Mas, não, isso não a incomodava.  Aprendera, desde que se entendia por gente, a conjugar sua vida, repetindo os radicais. Entretanto, as tardes faziam com que se lembrasse das exceções. Teca, que presenteava a todos com seu embalo manso de voz, também aprendeu a seguir regras. As dela vinham com o carimbo de ordem e, para não comprometer a renda extra por cuidar de menina Lena, nunca deixou de cumprir a de ouro: “Teca, ponha Leninha para dormir depois do almoço. Procure ajudá-la nos exercícios escolares quando ela acordar, está bem?”. Para Teca, não poderia ser melhor. Como tentava conciliar seu estudo em psicologia, o período vespertino sempre foi uma boa oportunidade de pôr as leituras em dia. Para Lena, por seu turno, seria ótimo poder enganar o tempo e fazer a manhã tocar a noite. Era um infortúnio ter que passar pelas tardes...

De vigília, Teca fiscalizava a menina deitada na cama, de tempos em tempos, nas breves interrupções de sua leitura. Não lhe ocorria, entretanto, a sofreguidão descontínua que sua supervisão provocava na menina que não queria dormir. Esta, em seu raciocínio distorcido do real, supunha que, adormecidas, as pessoas paravam de respirar. Assim sendo, como prova de que dormia, precisava socorrer-se, a procura de fôlegos, em harmonia com as inesperadas desviadas de olhar de Teca. Para a vida regulada de Lena, desrespirar era sua exceção. Fechar os olhos para a realidade e suas regras era afogar-se; era sentir-se fora de seu habitat. E, como era de se esperar, isso causava desconforto, cansava. Se ao menos Teca olhasse para ela nos mesmos intervalos de tempo – sempre se lamentava a menina –, era possível pensar em estratégias para aproveitar ao máximo o ar que lhe restava. Mas não...

Durante um tempo de prisão, que não marca hora e rasteja lânguido, à espreita, estudando a hora de atacar, Lena se deu conta que não estava mais condicionada à presença de Teca: em qualquer momento do dia, se o sono se aproximava, era o ar que lhe escapava. Para fugir do sufocamento do sono que se aproximava, precisou recorrer a qualquer artifício para despertar, mesmo que brevemente. Banho gelado, café quente, subir e descer as escadas. Ninguém na casa suspeitara de seu estranho comportamento, tampouco Lena quisera compartilhar-lhes a razão. Até que esta passou a ser a sua regra, a que todas as demais estavam subordinadas: não dormir. Era preciso estar sempre alerta. Era preciso estar sempre atento. Era preciso estar sempre acordado. Era preciso, enfim, enganar o sono. 

Não se sabe como fora possível, mas Lena atravessou anos e anos vencendo o sono. Vencia, mas à custa de não distinguir mais se era tarde ou noite. Se chovia ou se fazia calor. Todo dia era mais um dia. Sentia-se vitoriosa por, mais um dia, ter conseguido respirar. E sobreviver. Mas...

Um dia, diminuindo o status dessas conquistas solitárias, Lena ponderou que não bastava essa sobrevida: "Para que vencer sempre? Eu mereço ceder". E, decidida, preparou seu suco favorito – “abacaxi com hortelã tem o frescor de novos ares!” –, colocou-o em uma taça grande com um canudo que imitava um guarda-chuvinha colorido e levou-a consigo até seu quarto. Fechou as cortinas, sentou em sua poltrona macia pelo uso correto, bebeu goles generosos de novos ares e acionou a vitrola com a agulha no ponto: “heaven/ i'm in heaven/ and my heart beats so that i can hardly speak/ and I seem to find the happiness i seek”...

Ele entendeu o convite e foi chegando carinhosamente. Repousando a cabeça, Lena voltara a sonhar.