domingo, 7 de março de 2010

Eu vejo tudo enquadrado...

Sempre me inquietou a fixação da humanidade por buscar explicações. Até poderia dizer que é essa busca que motiva os homens a seguir. E a principal trilha percorrida pelos porquês é a que nos inaugura. A que nos faz ser. Nesse empenho, é admirável o passo dado pelos gregos. Como a mitologia dialoga conosco! Foi na altura dessas divagações que me lembrei de Seu Donato.
Estavam todas espalhadas por sobre a mesa. Findado o seriado televisivo, acompanhado religiosamente todas as noites, Seu Donato – como se usurpasse a tirania do tempo e carregasse o pesar de seus dias em suas costas – caminhava lento e envergadamente em direção ao centro da sala. Sentado à mesa, à meia-luz âmbar, ele mirava atentamente cada uma daquelas fotografias, em busca de qualquer sinal do que se foi. Elas desafiavam, com um semblante de empáfia, o que de Seu Donato ainda restava para que assim fosse chamado. Ao cabo de algumas horas, mais uma vez a cena se repetia: como poderiam ser tão familiares os cenários, sem que se revelasse sua presença? Aprisionado as essas quase-lembranças, ansiava por ver resquícios de si. Mas a ânsia se dissolvia ante a angústia do esquecimento. A cada retrato tirado, menos uma cena de sua vida.
Quando ainda contava suas vinte e poucas áureas primaveras, era outra a fixação de Donato: capturava para seu bel-prazer, como se a câmera fosse extensão de seu olhar, o maior número de momentos que pudesse registrar. Assim, alcançava sua felicidade clandestina: degustava, vagarosamente, o sabor do processo de revelação, para que, então, pudesse sentir o que tinha visto. Esses momentos sempre o faziam lembrar de algo que tinha lido sobre o ‘ter visto’ ser insubstituível. Para ele, como em acordo velado com essa ideia, ver só se iguala a ver. Não há como dizer. Mas não lhe ocorria que era preciso sentir ao ver; o sentimento ao rever é outro. Re(vi)vendo esses momentos, ele percebia o quanto não se via ali. O quanto eles não estavam em si. O quanto de si faltava.
Naquela mesma noite, em que as horas batiam de século em século, o inesperado bateu à porta: onde morava, de repente, a escuridão trancafiou todo o ambiente. Por instinto, Seu Donato afastou-se da mesa e encaminhou-se à janela, onde um filete de luz o seduzia. Debruçado no para-peito, ele, então, cumprimentou o luar. Um gosto salgado tocava o sorriso que se ameninava. E, como em suspensão pelas rédeas da surpresa, ele entendera.