Sempre me inquietou a fixação da humanidade por buscar explicações. Até poderia dizer que é essa busca que motiva os homens a seguir. E a principal trilha percorrida pelos porquês é a que nos inaugura. A que nos faz ser. Nesse empenho, é admirável o passo dado pelos gregos. Como a mitologia dialoga conosco! Foi na altura dessas divagações que me lembrei de Seu Donato.
Estavam todas espalhadas por sobre a mesa. Findado o seriado televisivo, acompanhado religiosamente todas as noites, Seu Donato – como se usurpasse a tirania do tempo e carregasse o pesar de seus dias em suas costas – caminhava lento e envergadamente em direção ao centro da sala. Sentado à mesa, à meia-luz âmbar, ele mirava atentamente cada uma daquelas fotografias, em busca de qualquer sinal do que se foi. Elas desafiavam, com um semblante de empáfia, o que de Seu Donato ainda restava para que assim fosse chamado. Ao cabo de algumas horas, mais uma vez a cena se repetia: como poderiam ser tão familiares os cenários, sem que se revelasse sua presença? Aprisionado as essas quase-lembranças, ansiava por ver resquícios de si. Mas a ânsia se dissolvia ante a angústia do esquecimento. A cada retrato tirado, menos uma cena de sua vida.
Quando ainda contava suas vinte e poucas áureas primaveras, era outra a fixação de Donato: capturava para seu bel-prazer, como se a câmera fosse extensão de seu olhar, o maior número de momentos que pudesse registrar. Assim, alcançava sua felicidade clandestina: degustava, vagarosamente, o sabor do processo de revelação, para que, então, pudesse sentir o que tinha visto. Esses momentos sempre o faziam lembrar de algo que tinha lido sobre o ‘ter visto’ ser insubstituível. Para ele, como em acordo velado com essa ideia, ver só se iguala a ver. Não há como dizer. Mas não lhe ocorria que era preciso sentir ao ver; o sentimento ao rever é outro. Re(vi)vendo esses momentos, ele percebia o quanto não se via ali. O quanto eles não estavam em si. O quanto de si faltava.
Naquela mesma noite, em que as horas batiam de século em século, o inesperado bateu à porta: onde morava, de repente, a escuridão trancafiou todo o ambiente. Por instinto, Seu Donato afastou-se da mesa e encaminhou-se à janela, onde um filete de luz o seduzia. Debruçado no para-peito, ele, então, cumprimentou o luar. Um gosto salgado tocava o sorriso que se ameninava. E, como em suspensão pelas rédeas da surpresa, ele entendera.

5 comentários:
mais uma vez parabéns pelo esmero na colocação das palavras o excelente uso que faz dos diversos sentidos que elas podem apresentar.
Quer saber uma característica marcante nos teus textos? O diálogo com os textos alheios: Chico Aderaldo César em um, Donato Lispector em outro e, como teia de aranha azulada, Bakhtin entre todos... Parabéns, muito bom! Só pra não perder o hábito, vou logo fazer aquela pergunta que não cala: quando virá o próximo??? Bjo, Lán.
Não tem vergonha não? Já é 2012 e o próximo ainda não chegou! Registro aqui o meu protesto! rum!
nem vai chegar. algumas coisas pqarece que não passam. muito estranho isso!!!!!
Gostei desse texto. Em alguns momentos, ficou um tanto fechado para mim, mas entendo isso como fruto da intenção de significar mais dizendo menos (ou dizendo diferente) — coisa fundamental, na minha opinião, mesmo correndo-se o risco de ser hermético (mas antes isso do que banal).
E Lili notou bem. Eu gosto desse diálogo não explícito e da forma como essas referências ganham novas nuanças num novo texto. Além disso, esse tema da memória e da solidão me fascinam. Beijos.
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