sábado, 16 de junho de 2012

Sobre perder botões


“Pois o só do meu sofrer 
bateu asas e voou
para um lugar
onde o teu cantar
foi levando e me levou”. 
(“Assum branco”)

Poucos sentiam tanto prazer por meio daquela atividade. O ferro passava com carinho em cada cantinho da manga, nas dobras da gola, nos espaços entre as casas abertas. Sorriam-lhe, em adeus, os amarrotados que davam lugar ao pano liso, amaciado com o calor das passagens nem breves nem longas. Era quando a precisão garantia a integridade da camisa, que se mantinha branca. Vesti-la era sentir de novo o abraço dela, já estiado desde o último inverno. Ele podia sentir seu toque, na coincidência das mãos, ao preencher cada casa com seu devido botão. E fazia isso petalamente, aspirando o perfume que brotava de cada um.
La dormeuse aux fleurs (Chagall)

Então abotoado, na breve caminhada rumo ao serviço, ele se guardava do mundo. Num acordo velado com a vizinhança, o branco imaculado que vestia flanava um apelo de paz. Quem o visse, dele desviava em respeito ao seu tempo de caminhar. Sem a violência das perguntas de quem quer bem, sem os alaridos das buzinas impacientes, ele passava por todos intacto. E assim continuou por um longo período. 

Uma vez, quando o que era tornava a ser presente, em descanso de seu automatismo, ele percebeu: sobrava uma casa sem flor. Atônito, recorreu àquelas de reserva e plantou outra no lugar. Ao sair, seguia pelo caminho habitual quando, em estalo, ouviu a primeira buzina. Como reflexo, o susto fez com que ele tocasse na camisa e entendesse que, mais uma vez, a casa insistia em ficar aberta. Apressou os passos, nervoso com o barulho cada vez mais recorrente, sem se dar conta que seu peito ficava cada vez mais à mostra. Em pouco tempo, abertos os ferrolhos, a camisa se agitava ao vento, desbranquecendo. Como rastro de um calor que encontrou  fonte diversa, um caminho florido ia se fazendo atrás dele, em seu encalço. 

Outra estação começava.


Um comentário:

Liliane Cintra disse...

Lindo, Lan. Notar uma casa sem flor e inaugurar estação deixando rastro de botões foram imagens muito bonitas. E a menção à "violência das perguntas de quem quer bem" não me passou despercebida, ficou dela um botão, um botão plantado em rastro que reconheci no meio dos meus...