“Pois o só do meu sofrer
bateu asas e voou
para um lugar
onde o teu
cantar
foi levando e me
levou”.
(“Assum branco”)
Poucos
sentiam tanto prazer por meio daquela atividade. O ferro passava com carinho em
cada cantinho da manga, nas dobras da gola, nos espaços entre as casas abertas.
Sorriam-lhe, em adeus, os amarrotados que davam lugar ao pano liso, amaciado
com o calor das passagens nem breves nem longas. Era quando a precisão garantia
a integridade da camisa, que se mantinha branca. Vesti-la era sentir de novo o
abraço dela, já estiado desde o último inverno. Ele podia sentir seu toque, na
coincidência das mãos, ao preencher cada casa com seu devido botão. E fazia
isso petalamente, aspirando o perfume que brotava de cada um.
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| La dormeuse aux fleurs (Chagall) |
Então abotoado,
na breve caminhada rumo ao serviço, ele se guardava do mundo. Num
acordo velado com a vizinhança, o branco imaculado que vestia flanava um apelo
de paz. Quem o visse, dele desviava em respeito ao seu tempo de caminhar. Sem a
violência das perguntas de quem quer bem, sem os alaridos das buzinas
impacientes, ele passava por todos intacto. E assim continuou por um longo
período.
Uma vez,
quando o que era tornava a ser presente, em descanso de seu automatismo, ele
percebeu: sobrava uma casa sem flor. Atônito, recorreu àquelas de reserva e
plantou outra no lugar. Ao sair, seguia pelo caminho habitual quando, em
estalo, ouviu a primeira buzina. Como reflexo, o susto fez com que ele tocasse
na camisa e entendesse que, mais uma vez, a casa insistia em ficar aberta.
Apressou os passos, nervoso com o barulho cada vez mais recorrente, sem se dar
conta que seu peito ficava cada vez mais à mostra. Em pouco tempo, abertos os
ferrolhos, a camisa se agitava ao vento, desbranquecendo. Como rastro de um
calor que encontrou fonte diversa, um caminho florido ia se fazendo atrás dele,
em seu encalço.
Outra
estação começava.

Um comentário:
Lindo, Lan. Notar uma casa sem flor e inaugurar estação deixando rastro de botões foram imagens muito bonitas. E a menção à "violência das perguntas de quem quer bem" não me passou despercebida, ficou dela um botão, um botão plantado em rastro que reconheci no meio dos meus...
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