Subjugada pela fome e reduzida a um instinto, uma mulher abre uma lata
de comida entre as prateleiras do lugar em que recebia uma cesta básica. Faz da
mão cuia e come um punhado de grãos em conserva. Em súbita volta ao estado de
humana, de mulher, de mãe de dois filhos, ela chora culpas que embebedam o não
menos doloroso “I’m sorry”, que escapole como um soluço. A expressão inglesa
comporta bem a cena: a mulher não só pede desculpas por seu ato animal, mas
também sente muito. Sente o peso da fome, sente o peso do abandono, sente o
peso da responsabilidade, sente o peso da vida injusta. E é esse sentimento, o
mesmo que irmaniza as pessoas em tragédias, que vai uni-la a Daniel Blake, que
interpreta o papel de tantas e tantas pessoas reduzidas a números de registro,
a nomes na tela burocrática dos computadores do governo, especialmente os
idosos que trabalharam uma vida inteira e não têm nenhum descanso a não ser o
prescrito pelas doenças. Não há quem não se identifique com, pelo menos, uma
das situações retratadas neste filme – o que é muito sério. Naturalizamos o
fato de sermos desrespeitados em esperas de centrais de atendimento, de sermos
diminuídos pelas regras que só desregulam nossas vidas, de termos nossa
paciência testada a cada contato cada vez mais robotizado de muitos atendentes.
Pouco a pouco, vamos perdendo nossa dignidade e, quando isso acontece, como
Blake frisa em um diálogo, acaba tudo. E, às vezes, é uma pichação (sim, ela,
não o grafite) o melhor meio para chamar atenção para a violência que é
desferida diariamente. É um modo de gritar quando ninguém dá ouvido: quem,
afinal, está sendo violado, destruído?
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