domingo, 18 de junho de 2017

Blake e todos nós




Subjugada pela fome e reduzida a um instinto, uma mulher abre uma lata de comida entre as prateleiras do lugar em que recebia uma cesta básica. Faz da mão cuia e come um punhado de grãos em conserva. Em súbita volta ao estado de humana, de mulher, de mãe de dois filhos, ela chora culpas que embebedam o não menos doloroso “I’m sorry”, que escapole como um soluço. A expressão inglesa comporta bem a cena: a mulher não só pede desculpas por seu ato animal, mas também sente muito. Sente o peso da fome, sente o peso do abandono, sente o peso da responsabilidade, sente o peso da vida injusta. E é esse sentimento, o mesmo que irmaniza as pessoas em tragédias, que vai uni-la a Daniel Blake, que interpreta o papel de tantas e tantas pessoas reduzidas a números de registro, a nomes na tela burocrática dos computadores do governo, especialmente os idosos que trabalharam uma vida inteira e não têm nenhum descanso a não ser o prescrito pelas doenças. Não há quem não se identifique com, pelo menos, uma das situações retratadas neste filme – o que é muito sério. Naturalizamos o fato de sermos desrespeitados em esperas de centrais de atendimento, de sermos diminuídos pelas regras que só desregulam nossas vidas, de termos nossa paciência testada a cada contato cada vez mais robotizado de muitos atendentes. Pouco a pouco, vamos perdendo nossa dignidade e, quando isso acontece, como Blake frisa em um diálogo, acaba tudo. E, às vezes, é uma pichação (sim, ela, não o grafite) o melhor meio para chamar atenção para a violência que é desferida diariamente. É um modo de gritar quando ninguém dá ouvido: quem, afinal, está sendo violado, destruído?




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